Histórias | Capítulo I Região de Leiria

Surma

É numa manhã estranhamente solarenga de abril que vamos encontrar a Surma, na porta do Atlas Hostel, bem no centro de Leiria. Rapidamente percebemos estar na presença de um ser vibrante, porque a energia que transmite é de tal forma contagiante que transfigura o ambiente à sua volta. A conversa aconteceu num pátio no topo do edifício, num cenário carregado de cor e plantas, alegre e pueril, a combinar de forma perfeita com a nossa Débora Umbelino, a que hoje já todos chamam carinhosamente de Surma. 

A Surma nasceu e cresceu em Leiria e a música foi sempre um elemento presente na sua vida. Conta que, em bebé, o pai a deitava num tapete e colocava um vinil a tocar, e quando a música parava, ela começava automaticamente a chorar. Na grande maioria das vezes a banda sonora seguia pela mão de Hank Williams, que considera uma espécie de avô adotivo e que mantém até hoje como uma das suas grandes referências no contexto musical. Embora ninguém na sua família estivesse diretamente ligado à música, o seu pai sempre foi um musicófilo, que inclusive comprava guitarras mesmo não sabendo tocar, sempre atento aos últimos gadgets na área. 

Imaginar que a música poderia ser de facto uma profissão era algo que não considerava possível, o que fez com que durante muito tempo a visse apenas como um hobby. O plano A era a medicina e foi com esse pensamento que acabou por escolher a área das Ciências. As bandas de liceu fizeram obviamente parte do seu crescimento e foram criando o bichinho pela realização que sentia com os ensaios e a adrenalina dos concertos. 

Desde os cinco anos que teve aulas de música, de piano e de guitarra, mas passados poucos meses acabava sempre por desistir. Sentia que a teoria, embora lhe trouxesse um conhecimento importante, era ao mesmo tempo uma espécie de prisão, e não se conseguia rever nessa forma rígida de ensino. É com 16 anos que se dá finalmente o momento de viragem, fui para Lisboa estudar para o Hot Clube, contrabaixo e voz, e naquele momento percebi que a música era a única coisa que me fazia totalmente realizada e feliz. Para trás ficou o plano de se tornar pediatra e a música passou a ser o centro de tudo na sua vida. É também nessa altura que é aceite para estudar em Berklee, nos EUA, mas os pais consideraram que seria uma mudança demasiado drástica sendo ela ainda tão nova, e ela própria compreendeu que provavelmente teriam razão. A passagem pelo Hot Clube foi crucial no seu percurso, não só pelo conhecimento que ali adquiriu mas por lhe ter trazido a certeza de ser esse o seu caminho. Apesar disso, voltou a sentir-se encurralada numa forma de ver a música muito inflexível e demasiado estruturada, e essencialmente muito diferente do que era a sua visão, que a esta altura era já bastante sólida.

Quando chegou o momento de criar um nome para o seu projeto, passeava-se com um pequeno caderno onde ia escrevendo possíveis denominações, mas seria um documentário na televisão que acabaria por lhe trazer essa resposta. Surma é o nome de uma tribo na Etiópia, e foi a forma como essas pessoas vêm a vida que a apaixonou, os Surma não pensam nos bens materiais, vivem como se fosse sempre o último dia, e eu quis ligar esta parte muito humana da música e não criar um projeto só porque sim. Achei mesmo muito bonito a maneira como levavam a vida e aquilo ficou-me na cabeça meses e meses. É em 2019 que, já enquanto Surma, se estreia no Festival da Canção. Fala desse momento com uma certa nostalgia, por ter sido tão marcante e também um desafio tão extraordinário. O facto de lhe ter sido dada liberdade total, sem qualquer imposição de limites, e ainda a possibilidade de criar a sua própria equipa, transformou esta experiência em algo muito especial. Aproveitou não só para partilhar essa experiência com as pessoas que a ajudaram e impulsionaram desde o início da sua carreira, mas também a de poder levar consigo uma parte da sua cidade, com o grupo de meninas do coro Ninfas do Lis. Chegar à final foi algo totalmente inesperado mas brutalmente gratificante e confessa ter ficado muito feliz com a vitória do Conan, alguém que admira e por quem torceu desde o começo. 

Hoje vive entre Lisboa e Leiria, mas é em Leiria onde se sente verdadeiramente em casa, mais especificamente na pequena aldeia do Vale do Horto, perdida no meio do bosque. Para criar o álbum tenho mesmo de estar em Leiria para compor, tem de ser cá e em casa sem ninguém, no meio do campo a ouvir os passarinhos e o mesmo para gravar. Gosto de gravar aqui porque é mais cosy. Com o Rui num estúdio muito caseirinho. Sinto que ganha muito mais personalidade. Para Surma, Leiria é mais do que o seu porto seguro, é também uma cidade dinâmica, culturalmente muito ativa e onde a música sempre fervilhou. Nas suas palavras, Leiria oferece todos os serviços que encontramos numa cidade de maior dimensão, mas ao mesmo tempo mantém-se com a essência dos lugares pacatos. Está longe do caos, do stress e da confusão de Lisboa e ao mesmo tempo perto de tudo, o que faz com que exista mais tempo para tudo, e que a vida seja em si mais calma.

Para o futuro o seu maior desejo é o de voltar aos palcos. Embora se tenha mantido sempre ativa durante o confinamento, com presença constante em eventos no digital, sente falta da azáfama da estrada e do contacto com as pessoas. Conta-nos que talvez venha até a escrever uma música em sueco, língua que começou a aprender durante a pandemia, embora admita que eu continuo a achar que consigo transmitir mais através da minha música sem recurso a letras. Depois deste ano tão estranho que todos vivemos, as certezas no que estará para vir são obrigatoriamente poucas, mas existe uma em particular que partilha ser inabalável, e essa é o quão bem lhe faz estar na sua cidade, não só para a saúde da sua música mas para a sua própria, física e mental. 

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