Histórias | Capítulo I Médio Tejo

Miguel Atalaia, Cem Soldos

Foi no começo do mês de maio, num dia de calor tão intenso que trazia a sensação de um verão fora de tempo, que fomos até Cem Soldos conhecer o Miguel Atalaia. Para que o calor não nos atrapalhasse a conversa, o Miguel levou-nos até à sede da Associação Sport Club Operário de Cem Soldos e foi lá que demos início ao que viria a ser um périplo cheio de curvas e contracurvas, onde fomos muito além dos temas que seriam mais evidentes. Seguimos guiados por ele por caminhos tão distantes do esperado como o futuro da educação ou as várias noções de cidadania. Este encontro primvou por uma atmosfera de grande descontração, mas foi a profundidade com que o Miguel nos falou sobre temas pelos quais é visivelmente apaixonado o que verdadeiramente permaneceu em nós. 

O Miguel tem 32 anos, nasceu e cresceu em Cem Soldos e é o atual Diretor Artístico do Festival Bons Sons e Presidente da Direção do SCOCS, onde o fomos encontrar. Licenciou-se em Design Gráfico e depois seguiu para um Mestrado em Design Editorial, ambos em Tomar, e mais recentemente passou por Lisboa e pela ETIC, onde tirou o curso de Cinema e Realização. A ligação à aldeia de Cem Soldos é para si umbilical, em todos os sentidos da palavra. Contudo, é a sua vertente associativa e a sua dinâmica cultural, onde se destaca o espírito dos seus jovens, o se nos revela ser ali verdadeiramente diferenciador. Acontece aqui uma coisa muito interessante. A nível de percurso académico e de trabalho, estes jovens que estão fora e mantêm ligação aqui, muitos estão a tirar cursos e a trabalhar em áreas que experimentam pela primeira vez aqui, quer no festival Bons Sons quer noutras dinâmicas culturais. 

Embora tenha assumido o cargo de Diretor Artístico do Festival Bons Sons apenas no início do ano de 2020, a sua ligação ao Festival aconteceu desde o primeiro momento, e é com grande paixão que nos fala sobre ele. Explica-nos a importância do voluntariado enquanto pilar fundamental do Festival, promovendo a responsabilização, a entreajuda e o envolvimento de toda a aldeia, ao mesmo tempo que oferece aos festivaleiros uma experiência de imersão nas vivências de Cem Soldos. Com a mesma relevância, fala-nos do quão importante foi o palco que deram à música portuguesa. É também nesta altura que partilha connosco um momento muito especial de uma das edições do Festival, que ele acredita espelhar o quão diferente é o ambiente que se vive ali durante aqueles quatro dias. Foi durante um concerto no Palco Amália – cuja banda já não sabe precisar – num final de tarde junto à Igreja que algo inesperado aconteceu. Alguém no público viu uma senhora a assistir ao concerto da sua janela, sendo que esse alguém era a D. Lurdes, que hoje já não se encontra entre nós, e decidiu começar a cantar-lhe o “Menina estás à janela”. É com um brilho nos olhos que o Miguel nos conta o quão extraordinário foi aquele momento, em que a banda parou para que todos os que ali estavam pudessem cantar aquela música em uníssono. Naquele momento quebrou-se a lógica de estarmos ali para ver um concerto, nós estávamos ali todos juntos no mesmo momento e interligados, a viver a aldeia. 

Cada edição é uma nova descoberta e um novo desafio, com todos os habitantes a ajudar a contornar as dificuldades que surgem, e hoje em dia a aceitação por parte de Cem Soldos é esmagadora. A explicação para essa aceitação, tão clara, prende-se essencialmente com os projetos estruturantes para os quais o Festival contribui, sendo um bom exemplo o projeto “Escola Aldeia”. A forma como nos fala sobre este projeto em particular torna evidente o carinho que detém por ele e nós somos rapidamente contagiados pela visão que nos transmite do mesmo. Esse projeto nasceu num momento em que a continuidade da escola primária na aldeia se encontrava em risco, e pelo esforço conjunto da SOCS, do Agrupamento de Escolas e da Associação de Pais, foi possível criar um projeto diferenciador que, além de ter conseguido manter a sobrevivência da escola, trouxe ainda crianças de vários concelhos em volta até Cem Soldos. Numa lógica de ligação direta à comunidade, potenciando a entreajuda e a envolvência das crianças com a própria aldeia e as suas pessoas, hoje este é mais do que um projeto de sucesso, é um exemplo no caminho de uma visão educativa que se quer de futuro.

Embora esteja neste momento a trabalhar no gabinete de comunicação da Câmara Municipal da Chamusca, o regime misto de teletrabalho e de trabalho presencial permitem que continue a viver tranquilamente em Cem Soldos. Para mim a ligação à natureza é essencial e é por isso que a minha casa está no meio das árvores, com animais a toda a volta. O teletrabalho é incrível neste tipo de contextos e eu acho que a pandemia conseguiu revelar essa vantagem enorme de estarmos num sítio pacífico onde conhecemos os nossos vizinhos e nos sentimos confortáveis. Muitas profissões nunca fizeram sentido num escritório, um designer por exemplo, estamos a falar de um trabalho criativo que precisa de respirar. Existe certamente uma maior produtividade se tivermos lógicas de trabalho desgarradas de um horário contínuo, direto, num sítio específico, com luz artificial e sem janelas.

Na despedida do Miguel e de Cem Soldos, a sensação é a de que nunca mais poderemos olhar aquela aldeia da mesma forma. Não só porque nos lembraremos para sempre da D. Lurdes na janela a ser brindada com um concerto insólito, mas porque o Miguel nos conseguiu transmitir de forma bastante vívida e genuína, o potencial imenso desta aldeia e de tantas outras como ela. Por oposição a uma ideia de isolamento ou de aprisionamento, que alguns podem ainda associar a lugares pequenos como este, o sentimento com que partimos foi o de deixarmos um espaço de grande e absoluta liberdade.