Histórias | Capítulo I Ria de Aveiro

José e Alberto, Arte Xávega

Foi num dia cinzento, daqueles em que nos esquecemos que ainda estamos em agosto e em pleno verão, que seguimos viagem até à Praia da Vagueira, no concelho de Vagos, aquela que segundo muitos é a melhor praia do mundo. A primeira imagem que nos prende é a da extensão do seu areal e paredão e, ao mesmo tempo, a envolvente vegetação e paisagem dunar, um território onde a Ria de Aveiro e o mar parecem entrelaçar-se na perfeição. Junto ao armazém de madeira onde os pescadores guardam o material, foi aí que fomos recebidos pelo José e pelo seu irmão Alberto. Dentro do armazém conhecemos outros membros da equipa, a maioria com fortes ligações familiares entre si. Também eles ajudam nas lides dessa arte de pesca costeira artesanal conhecida como a Arte Xávega.

A Arte Xávega remonta ao século XIX e é hoje uma daquelas tradições que parece estar perto de conhecer a sua extinção. Antigamente, este processo era feito com recurso a juntas de bois, mas hoje as mesmas foram substituídas por tração mecânica através de tratores. Os restantes processos mantêm-se praticamente fiéis ao que sempre foram, de barco, os pescadores lançam as redes ao mar e cercam os cardumes, posteriormente, alam a rede para a costa, sendo o seu equipamento composto por um longo cabo com flutuadores, que tem na sua metade de comprimento um saco de rede em forma cónica. A praia da Vagueira, uma das mais populares desta região, é hoje uma das poucas onde ainda podemos assistir a esta que é a mais antiga forma de pesca no mundo. Esta arte de cerco e arrasto, faz parte da cultura e da história local e é pelas mãos de homens como o José e Alberto que vai sobrevivendo, a verdade é que praticamente nascemos dentro de uma proa de um barco. 

Neste momento conseguem juntar 12 a 13 pessoas, mas noutros tempos chegaram a ser o dobro. Nos dias de hoje é muito difícil arranjar quem queira trabalhar na arte xávega, muito em consequência da própria dureza deste trabalho mas também porque monetariamente se torna cada vez menos compensador. Recordam-se de quando chegavam à praia, vindos do mar, e encontravam 10 a 15 peixeiros à guerra pelo peixe que traziam, mas hoje a realidade é brutalmente diferente. Por outro lado, continua a ser a sua presença na praia, de cada vez que regressam, que atrai turistas que enchem o areal para assistirem à chegada do barco e do peixe, um espetáculo que pela sua raridade continua a surpreender todos. Apesar de existirem apoios para que a tradição se possa manter viva, continua a ser um trabalho muito precário, porque estão sempre dependentes do que conseguem ou não vender e os valores não se comparam com o que eram noutros tempos, o que pescamos é o que ganhamos, barato ou caro temos de o vender, não temos ordenado. 

Continuando a enfrentar a força da rebentação em barcos de madeira como antigamente, já foram muitos os sustos por que passaram ao longo de uma vida dedicada ao mar. Numa dessas vezes o barco começou a afundar, estavam eles no meio do mar sem ninguém ao redor. Estava eu, o meu pai e o meu irmão. Lá vimos finalmente um barco, acenámos e conseguimos chegar ao farol. O sangue estava a ferver e ainda fomos para o mar levantar as redes novamente e tirámos o barco do fundo. Não havia outra hipótese, estava lá o nosso ganha-pão. A instabilidade desta profissão e a sua sazonalidade faz com que quase todos eles já tenham estado envolvidos noutro tipo de trabalhos. Alberto, por exemplo, já esteve na pesca do bacalhau em alto mar, mas por entre risos admite que, o bacalhau é bom é no prato e depois custa porque são 4 meses a ver água, gaivotas e as mesmas caras. Já fui a muitos sítios mas a minha cabeça esteve sempre aqui.

Hoje, a esperança de esta arte se poder prolongar está nos filhos. Eles são danados para a pesca e é muito graças a eles que conseguimos continuar. A manutenção dos tratores por exemplo já são eles que a fazem e assim já conseguimos poupar em alguns custos. É curioso que, apesar das muitas dificuldades por que passam e das muitas histórias que vão partilhando connosco, de momentos a que de alguma forma sobreviveram apenas por milagre, continua a ser evidente o amor a esta arte. A sua identidade confunde-se com a deste mar e essa ligação é de facto umbilical. Estes são, sem sombra de dúvida, os verdadeiros homens do mar, que ficarão gravados na história desta tradição e na memória da Vagueira. A vida de pescador não é fácil, uns dias dá tudo e outros não dá nada, mas ir para o mar é a nossa vida, nós somos isto, este lugar.