Jorge Marques, Filigrana
Foi na freguesia de Orvalho, no município de Oleiros, sob o calor típico do mês de agosto, que fomos conhecer Jorge Marques. Sabíamos de antemão que iríamos estar na presença de um artista, mas foi de forma propositada que não aprofundámos a pesquisa sobre o seu trajeto. O pouco que sabíamos trazia a certeza de que a conversa seria interessante, honesta e talvez um tanto mordaz. Detínhamos assim todos os ingredientes para uma viagem cheia de adrenalina, a contrastar com a serenidade e a quietude que sentimos ao chegar a esta pequena freguesia. Seguimos com o Jorge até ao seu espaço de trabalho e, para nosso espanto, o mesmo não era apenas dominado pelo ferro, mas também por frases inspiradoras, espalhadas por todas as paredes. Ali chegados soubemos que estávamos no lugar da ação, e por isso sentámo-nos e deixamos que apenas a voz de Jorge nos guiasse.
Jorge nasceu, cresceu e viveu em Lisboa até aos seus 60 anos. Desde os seus bisavós aos seus pais todos eram de Lisboa e é na capital que assume ter as suas raízes. A ligação a Orvalho chega apenas através do seu sogro, que ali vivia, mas comecemos pelo início. Foi com apenas 12 anos que Jorge começou a trabalhar numa tipografia. Aos 14, através de uns vizinhos passa a trabalhar numa fábrica de armamento militar. Tinha 17 anos quando se dá o 25 de Abril e a sua vida profissional começa a encaminhar-se noutra direção. A sua vocação para as artes estava lá desde sempre, e de alguma forma sempre soube que o caminho seria por aí, e de facto, assim foi.
Foi através da publicidade que a arte finalmente pôde emergir na sua vida e pelas das suas próprias mãos. A sua função estava associada à pintura, e esse acabaria por ser o meio a que estaria ligado durante mais tempo e ao qual ainda hoje se imagina a regressar. Partilha connosco uma frase que se lembra de ter lido e com a qual desde sempre se identifica, quem trabalha com as mãos é um artesão, quem trabalha com as mãos e com a cabeça é um grande artesão, quem trabalha com as mãos, a cabeça e o coração é um artista. Esta premissa esteve sempre impressa na sua forma de trabalhar e admite que não saberia ser de outra forma. Além da publicidade, viria também a pintar capacetes, motas, camiões e tunings, tendo sido um dos primeiros em Portugal a fazê-lo. Mas a vida acabaria por lhe trazer mais uma reviravolta. Quando o meio publicitário passou a ser praticamente todo digital e dominado por máquinas, percebeu que não havia lugar para si, porque se considerava ele próprio a máquina. A publicidade antes era feita pelos artistas, agora é por computadores.
A saída da área da publicidade e também a chegada da crise obrigaram-no a parar e a perceber por onde poderia seguir desta vez. Decidiu assim abordar um amigo que tinha uma oficina de automóveis e disse-lhe, ensina-me aí a soldar que eu vou fazer coisas em ferro. Como tinha já algumas noções de escultura que vinham de trabalhos que fez para teatro, rapidamente começou a perceber que era capaz, e durante 1 ano desenvolveu trabalhos utilizando o espaço dessa oficina. A vida de Jorge teve tantos acasos, imprevistos e momentos de viragem que até para ele se torna difícil manter uma ordem cronológica dos acontecimentos. Em várias ocasiões teve de regressar a trabalhos dos quais não tirava nenhum tipo de prazer, mas porque as necessidades assim o exigiam, e nesses momentos sentia sempre, isto não é viver, é sobreviver.
Foi durante uma feira a decorrer na FIL, onde tinha um stand com os seus trabalhos, que mais um desses momentos de viragem aconteceu. Paulo, ligado ao município de Oleiros, e que Jorge já conhecia pelas visitas que fazia ao sogro, viu ali o seu trabalho e abordou-o, sugerindo que lhe conseguissem um espaço em Orvalho onde pudesse produzir os seus trabalhos. Foi assim que há 4 anos se mudou de armas e bagagens para Orvalho. Foi também por essa altura que lhe surgiu um convite inusitado por parte de um senhor chamado João Magalhães: que construísse um Jaguar XK120 em tamanho real. Para muitos a ideia poderia parecer absurda e impossível de concretizar, mas nunca para Jorge, quanto mais complicado é o trabalho, mais gozo me dá. A verdade é que, menos de 6 meses depois, o carro estava pronto, pedais, volante, bancos, tudo, com um peso aproximado de 400 kg de arame e ferro, segundo a mais fina técnica de filigrana, e hoje o mesmo pode ser visto no Museu Automobilístico e de Moda de Málaga.
Pelo meio desta apaixonante história, Jorge pintou motores de automóveis antigos, construiu instrumentos musicais – essencialmente cavaquinhos e guitarras – uma delas com quase dois metros de altura, e mais recentemente um piano. Enquanto artista que pensa, cria e executa, não parecem existir barreiras nem à sua imaginação nem às suas capacidades. Embora pareça ter encontrado no ferro o seu caminho, o seu desejo constante de aprender mais irá provavelmente levá-lo ainda até outras paragens artísticas. Contudo, Orvalho parece ter-se tornado o seu lugar ideal para trabalhar, aqui é acima de tudo a noção de espaço e o conseguir ouvir-se o silêncio. Para alguém que em vários momentos da conversa reforçou a importância de se sentir livre e feliz, parece-nos que encontrou aqui a morada certa.