Capuchinhas, Campo Benfeito
Fizemo-nos à estrada e viajámos até à Serra de Montemuro, considerada nos anos 50 pelo geógrafo Amorim Girão como “a Serra mais desconhecida de Portugal”. O caminho, feito de curvas e contracurvas e marcado pela beleza da paisagem, levou-nos até à aldeia de Campo Benfeito, em Castro Daire. Esta Aldeia de Portugal é casa de poucas dezenas de pessoas e de boas histórias de quem arregaçou mangas para criar negócios ligados às tradições da terra.
Fomos conhecer as Capuchinhas, uma cooperativa de artesanato que se dedica à produção de vestuário e acessórios em burel, linho e lã. Entrámos na antiga escola primária e dirigimo-nos para a antiga sala de aula que alberga agora teares, máquinas de costura, estantes forradas com meadas, linhas, ferramentas de costura e uma grande mesa de trabalho que é palco de constantes reinvenções dos saberes tradicionais. “Isto hoje está assim um bocadinho mais confuso, já temos algumas peças da coleção deste ano, a minha colega está ali a tecer linho, aquele tear está com lã e este também.”
Demorámo-nos a apreciar a conversa, a dança de linhas e opiniões que, todos os anos, cosem ideias para as novas coleções, em conjunto com Paula Caria, a designer de moda dos últimos 20 anos. Engrácia Félix Duarte, Isabel Duarte, Ester Duarte e Henriqueta Félix são mulheres que não quiseram arredar pé daquele sítio numa época em que emigrar era quase a única opção para quem queria um futuro para lá da agricultura de montanha pobre, apoiada na pastorícia tradicional.
Regressámos à sala de entrada, que exibe cabides carregados de peças finais, únicas e dignas de escaparates de moda, que saltam dos usos do campo para avenidas cosmopolitas, do passado para caminhos de futuro. Sentámo-nos em bancos de madeira, a porta escancarada para o campo, aquele Campo Benfeito que tornou sonhos em realidade. Conversámos com Engrácia e Isabel sobre esta sua viagem mais profunda, aquela que se faz dentro de cada um de nós e nos revela a beleza do sentido de pertença a um sítio.
Tudo começou com uma ação de formação de corte e costura que Ester e Henriqueta frequentaram, promovida pelo antigo Instituto dos Assuntos Culturais, no Mesio. A aldeia estava a ficar com pouca gente e estas mulheres queriam criar o seu próprio emprego e teimar em ficar em Campo Benfeito, “um desafio nos anos 80 de todo o tamanho”, contou-nos Isabel. Seguiu-se a formação Gestão, Profissão, Mulher, organizada pela Comissão da Condição Feminina, no Porto, e foi de lá que saiu o nome Capuchinhas que se inspira na capucha, a capa que se utiliza na serra para proteger as pessoas do frio. “Elas eram mulheres, queriam criar o próprio emprego mas algo que as ligasse à terra. Pegaram nas mantas, tapetes e tecelagens que existiam e que ajudavam na agricultura, e convidaram as tecedeiras da aldeia para ensinar a fazer desenhos modernos.” Deste curso também saiu o logótipo, bem como as primeiras peças das Capuchinhas. “As fundadoras queriam fazer coisas diferentes e houve uma instituição sueca que pagou à designer Maria Helena Cardoso para vir ao Montemuro fazer alguns produtos. Era o tradicional modernizado. Essa ajuda foi muito significativa ao longo do tempo. Se fôssemos vender só capuchas não conseguiríamos criar emprego.”
Henriqueta e Ester são as mestres da costura, Cila (Engrácia) ocupa-se das malhas e tecelagem e Isabel dedica-se à tecelagem. “Também trabalhamos com o burel, o tecido tradicional da capucha. A gente faz casacos modernos com o tecido da capucha.” Cada ano estudam-se combinações possíveis com misturas de malha com tecelagem e de malha com burel, que resultam em túnicas, saias, tops, camisolas, casacos, calças e vestidos, e ainda em malas e carteiras, alfinetes, gorros e cachecóis.
As coleções anuais também revisitam o engenho dos reaproveitamentos, como a utilização de sobras do tecido de linho que são ordenadas em tiras que se voltam a tecer. Aliás, as cores que vemos em todos os produtos são obtidas através de técnicas naturais. “Fazemos coisas modernas mas usando técnicas que nos foram transmitidas, tradicionais. O branco é a cor natural dos tecidos de lã ou de linho, os tintos somos nós que fazemos: no sarilho faz-se a meada e depois pegamos na meada branca, juntamos com as ervas numa panela a ferver, só água e as ervas, mais nada.” Há tons que resultam de fetos e urtigas, outros que vêm das folhas de nogueira, das barbas dos carvalhos ou de líquens. “As meias dos homens eram brancas e sujavam-se muito na agricultura, então as nossas mães tingiam-nas com o amarelo das barbas dos carvalhos.”
As Capuchinhas já fizeram peças para a Moda Lisboa, para o estilista Filipe Faísca, e de Campo Benfeito também viajam regularmente roupas para uma colaboração com um estilista japonês. O trabalho mais especial de todos é a ligação com os seus clientes. “Temos uma afinidade com os clientes, fazemos à medida, fazemos personalizado. Não são peças em série, é peça por peça e há sempre ali uma conversa grande antes da peça sair, as pessoas gostam de saber como é que as coisas são feitas. Criamos uma coleção, fazemos o mostruário e depois fazemos por encomenda, faz-se tudo devagarinho. Este casaco demora quase dois dias a fazer só a tecelagem, leva muita tecelagem, e mais um dia para a confeção. Um casaco de 170€ pode parecer caro mas depois as pessoas conhecem o trabalho, vêem o que aqui fazemos e voltam. A maioria dos clientes são portugueses, de Lisboa e Porto.”
O sentimento comum às Capuchinhas é o orgulho pela estrada percorrida até aos dias de hoje, décadas de entrega às artes e ofícios tradicionais numa nota de modernização. “Gostamos de ver as nossas clientes a dar valor ao que a gente faz. Como gostamos do que fazemos, fazemos com qualidade e que seja bonito. As pessoas têm reconhecido isso e é o que nos dá sempre força para continuar. Sentimos essa união entre nós porque temos essa preocupação de fazer um produto diferente, com inovação e qualidade, que dura muito tempo.”
Do mundo inteiro, só queriam viver em Campo Benfeito. “Não queríamos sair daqui. O que nos dá força é que a gente quer tanto estar aqui, gosta tanto daquilo que faz. E porquê? Perguntas difíceis. Eu sei que quero cá estar, moro ali num cantinho que olho para o monte, no confinamento nem senti nada. Mesmo quando as alturas não são boas, a gente pensa nelas mas pensa nelas aqui.”